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Remição da pena pela leitura inclui mulheres não alfabetizadas na Penitenciária Feminina de Guaíba

Projeto prevê uso de estratégias específicas no relatório de leitura de pessoas em fase de alfabetização

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O primeiro encontro de 2024 contou com a participação de cinco apenadas - Foto: Jurgen Mayrhofer/Ascom SSPS

Buscar a ressocialização e incluir mulheres privadas de liberdade não alfabetizadas na remição da pena por meio da leitura são os principais objetivos do Projeto Entrelinhas. Desenvolvido de forma experimental no ano passado, na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba (PEFG), a iniciativa retomou os trabalhos na última quinta-feira (25/1) com um grupo de cinco apenadas. A ação foi pensada pela direção e pelo setor técnico da unidade prisional e é executada em parceria com o Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos (Neeja).

No projeto, a leitura é realizada pela equipe técnica, em voz alta, para as apenadas acompanharem a história. A seguir, as participantes do Entrelinhas discutem o texto e, a partir da própria interpretação, expressam o que foi aprendido na linguagem em que se sentem mais confortáveis – como o desenho ou a colagem de imagens e palavras.

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Durante os encontros, as apenadas contam com o apoio da equipe técnica da unidade - Foto: Jurgen Mayrhofer/Ascom SSPS

A primeira leitura do ano, sobre folclore brasileiro, retoma a parceria com o Banco de Livros da Fundação Gaúcha dos Bancos Sociais – entidade que realiza doações de obras para bibliotecas de casas prisionais e doou uma coleção de obras inclusivas, que também são adaptadas para pessoas com deficiência visual e baixa visão.

A formação inicial do projeto-piloto contemplou dez apenadas em 2023. Acompanhadas por membros da Comissão Permanente de Fomento à Leitura do Neeja da unidade, elas escolheram com a equipe técnica e as professoras a obra lida na oficina. 

Ana (nome fictício), de 41 anos, participou do encontro no ano passado e considera o Entrelinhas uma ótima oportunidade. “Eu gosto de ler, mas tenho muita dificuldade. Aí leio os livros e os gibis, mais fáceis. A Bíblia já é uma leitura bem difícil, pois vou esquecendo algumas partes”, conta. Como não concluiu o Ensino Fundamental, Ana se enquadra no perfil do projeto. E, apesar de não frequentar as aulas regulares do Neeja na unidade, ela busca se manter ativa participando de outros cursos de formação e trabalhando na manutenção do estabelecimento prisional.

Uma ordem de serviço da Polícia Penal, publicada em 2021, prevê o emprego de estratégias específicas no relatório de pessoas em fase de alfabetização, como a leitura entre pares, de audiobooks e oral, além do registro do conteúdo lido por meio de outras formas de expressão – como no caso de Ana, que utilizou a expressão artística do desenho para apresentar sua interpretação da obra no relatório de leitura. Para este ano, Ana sugere a inclusão de mais atividades lúdicas que mantenham a atenção das participantes, como vídeos que possam ser usados na prática da escrita. 

Diminuição da pena por meio da leitura

Conforme a técnica superior penitenciária Carla Castro, uma das responsáveis pelo Entrelinhas, não estar inscrita nas aulas do Neeja não é um excludente ou impeditivo para a participação das detentas no projeto, que incentivou algumas das participantes a buscar conexão com a leitura e retomar a alfabetização formal. Além disso, as professoras selecionam e identificam o perfil de apenada que poderia se encaixar bem no projeto, ou que começou a fazer a alfabetização, mas desistiu e teria interesse na remição pela leitura.

“A fase da remição é também a da socialização. O momento em que está todo mundo junto e que elas têm mais interação com a equipe técnica, pois estamos dentro da galeria e das salas de aula. Isso faz com que se sintam mais vistas, porque têm um contato direto com quem está do lado de fora”, explica Carla, que é psicóloga. “Então é bem interessante no sentido de proporcionar que elas consigam sair daqueles quatro muros.”

Pela legislação vigente, após a leitura do livro, que deve ser realizada em até 30 dias, as apenadas fazem um relatório sobre o material, que será avaliado pela Comissão de Validação da unidade. Cada obra lida, depois do reconhecimento da Justiça, representa a redução de quatro dias da pena, considerando o limite de 12 livros lidos por ano, resultando em 48 dias remidos, que é o teto anual para essa modalidade de remição. 

Atualmente, conforme a Polícia Penal, 77 unidades prisionais contam com projetos ou programas de remição pela leitura, que beneficiam 2.433 pessoas privadas de liberdade. A diretora da PEFG, Isadora Minozzo, explica que a leitura como forma de remição vem sendo acessada por mais apenadas, apesar da oscilação no número de participantes. Em média, 57 apenadas participam desse tipo remição por mês. “Antes, a escrita da resenha era em horário de aula. Agora, elas vão até a sala de aula em outro horário, e todas que leram fazem sua resenha na frente das servidoras”, afirma. 

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Os encontros do projeto também são um momento de socialização entre as apenadas - Foto: Jurgen Mayrhofer/Ascom SSPS

De acordo com o titular da Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS), Luiz Henrique Viana, as práticas de leitura crescem gradualmente dentro do sistema prisional como uma ferramenta de lazer e ensino. “Para muitas pessoas privadas de liberdade, é o primeiro contato com o livro e o estímulo para um novo hábito. Além da possibilidade da remição, também é uma forma de gerar conhecimento e senso crítico”, destaca.

Analfabetismo no sistema prisional

No Rio Grande do Sul, segundo dados da Polícia Penal de setembro de 2023, das cerca de 41 mil pessoas privadas de liberdade, 665 são analfabetas, enquanto 460 estão em processo de alfabetização.

Para Ana, a retomada do Entrelinhas significa a chance de desenvolver não somente a prática da leitura, mas também o autoconhecimento a partir da socialização. “Acho importante aprender a dialogar, a conversar sobre os textos. É melhor para se entender, para aprender e evoluir. Eu quero sair daqui e arrumar um bom emprego. Para isso, tenho de aprender a pelo menos fazer minha assinatura”, observa. 

Segundo o Censo Nacional de Práticas de Leitura no Sistema Prisional, a maioria dos estabelecimentos prisionais pesquisados, 61,2%, declarou possuir bibliotecas, enquanto 30,4% disseram não possuir nenhum tipo de espaço de leitura. O levantamento foi realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com a Universidade Católica de Pelotas (UCPel), a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e o programa Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, para acelerar transformações no campo da privação de liberdade. A pesquisa ouviu 1.347 unidades prisionais do país, em 2022.

No Estado, a Polícia Penal contabiliza 84 desses ambientes ou de espaços similares a bibliotecas implantadas em estabelecimentos prisionais. Na 10ª Região Penitenciária, da qual a PEFG faz parte, são oito. 

O espaço de leitura da penitenciária é mantido por agentes penitenciárias, e os livros podem ser retirados por apenadas promotoras de educação. As promotoras possuem uma lista do acervo da biblioteca da unidade prisional, que pode ser repassada às apenadas interessadas em realizar a remição pela leitura ou que buscam retirar um livro para ler. Manter o espaço organizado e fazer a retirada e a devolução dos livros é uma das funções das promotoras. 

A técnica superior penitenciária Dulciana Araújo ressalta que as participantes do Entrelinhas incentivam outras apenadas, que se enquadram no perfil e desejam participar da remição, a ingressar no projeto. “O maior canal de informação sobre o projeto são elas mesmas, que compartilham as experiências da oficina. Às vezes, as apenadas acham que tem de chegar já lendo, e na verdade não é assim, é uma leitura compartilhada”, salienta a assistente social.

Os gêneros escolhidos costumam se entrelaçar com as vivências das detentas – como livros espíritas e religiosos, romances, histórias escritas por egressos e apenados sobre o sistema penal, além de literatura infantil e infantojuvenil. 


* nome fictício utilizado para preservar a identidade da apenada

Texto: Vitória Garcia, sob supervisão da Ascom SSPS

Edição: Felipe Borges/Secom

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