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Sistema prisional é pauta de reportagem publicada em revista da UFRGS

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- - Foto: João Pedro Rodrigues

O sistema prisional gaúcho foi pauta de reportagem publicada em uma revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A Sextante, produzida por alunos de jornalismo da Fabico, teve o lar como tema de sua 64ª edição e, para abordar este assunto, os estudantes João Pedro Rodrigues e Pedro Tubiana conversaram com três apenadas do Presídio Feminino Madre Pelletier, localizado em Porto Alegre. A questão abordada foi a seguinte: “o que é lar para você?”.

Confira abaixo a reportagem:

 

Coração de mãe encarcerado

Três mulheres de diferentes origens compartilham suas concepções de lar enquanto cumprem pena no Presídio Feminino Madre Pelletier

Vomitando sangue, Jaqueline não sabia que estava com tuberculose quando chegou ao local em que viveria seus próximos dias. Karen, cansada da vida de foragida, se entregou à polícia. Sandra nunca havia passado por uma delegacia antes. Essas três mulheres hoje circulam pelo mesmo espaço: o Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier. O prédio histórico, cor de rosa desgastado, é o lugar onde elas se adaptam a novas rotinas, ressignificam relações e rememoram o lar. 

Se não fossem as grades e cercas que o circundam, o Madre aparentaria ser apenas mais um prédio abandonado, com janelas quebradas e rachaduras na parede. No entanto, é a moradia provisória de 141 mulheres, segundo o Perfil das Mulheres Privadas de Liberdade do Observatório do Sistema Prisional do Rio Grande do Sul.

Localizada na avenida Teresópolis, em Porto Alegre, a casa prisional feminina é a segunda maior do Rio Grande do Sul em número de apenadas recolhidas. No estado todo, são 814 aprisionadas em unidades destinadas exclusivamente a mulheres. 

Segunda casa 

Jaqueline
Jaqueline não sabia que estava com tuberculose quando chegou no presídio - Foto: João Pedro Rodrigues

Jaqueline*, de 30 anos, descreve o estabelecimento como sua segunda casa. A primeira, onde mora sua família e a qual entende como lar, já não estava ao seu alcance quando chegou no Madre necessitando de cuidados médicos. Ainda que tivesse casa e família fora da prisão, era na rua que ela morava. Com um curativo envolvendo o pescoço e calçando um par de havaianas, conta: “Como sou usuária de droga, eu não paro muito em casa. Não tem aquela convivência. Agora, estou nessa nova casa. Aqui, eu tenho minha cela, meu colégio, a gente vai para o pátio. Eu me sinto melhor do que na rua”.

Jaqueline vive com outras três mulheres em uma das seis celas de um longo corredor. Ela dorme em um dos dois beliches, na parte de baixo. Não pode dormir em cima devido à sua costela quebrada. “Ninguém pode dormir no chão”, diz. Na cela, comenta que elas têm de tudo: TV, rádio e um grande ventilador. Elas passam o dia conversando e estudando, se preparando para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), prova para confirmação dos ensinos fundamental e médio. 

É no intervalo entre uma atividade e outra que ela aproveita para ver as fotos de seus filhos, que estão guardadas junto de seus pertences dentro da cela. São cinco crianças que a visitam mensalmente na unidade, sendo a mais velha uma menina de 15 e, o mais novo, um menino de cinco. Ela não os via muito quando estava na rua – o pai é responsável pelas crianças. “Acaba que eu venho presa, e eles vêm até mim. Tenho mais participação com eles quando estou presa.” No pátio da unidade, onde estão pintados no chão alguns jogos e brincadeiras, como a famosa “amarelinha”, ela se diverte. Compartilha também que, quando brincam de pega-pega, ela não quer pegá-los, e sim que eles a peguem. “Pareço uma criança”, comenta.

A assistente social Marilene da Silva João, técnica superior penitenciária da Polícia Penal, destaca que situações como a de Jaqueline são comuns. De acordo com ela, grande parte das mulheres privadas de liberdade perde o vínculo com a família devido a problemas de dependência química e, atrelado à falta de assistência pública de saúde, acabam adentrando no sistema prisional.

Essa perspectiva é corroborada pelo Perfil das Mulheres Privadas de Liberdade do RS. Segundo o documento, 42,8% delas têm pena vinculada ao tráfico de drogas. No Presídio Madre Pelletier, o percentual é menor, de 19,8%, mas ainda ocupa o primeiro lugar nas estatísticas de tipificação criminal, seguido por furto simples (19,1%) e roubo qualificado (15,6%). Do total de apenadas no estado, 77,5% têm filhos.

Para Marilene, mesmo que a prisão não seja a solução para o problema da dependência química, é um espaço que garante que essas mulheres tenham um lugar seguro para recuperar a saúde e a relação com a família. “A cadeia não é boa, mas aqui a pessoa consegue dormir, se alimentar e ser vista como uma cidadã.”

Lar é onde os filhos estão

Sandra
Sandra lembra dos filhos quando pensa em lar e diz que sempre foi muito apegada a eles - Foto: João Pedro Rodrigues

Vestindo uma blusa floral e calça laranja, Sandra, de 47 anos, diz que lar é um lugar de acolhimento e aconchego: um coração de mãe. “Meu lar hoje é estar pensando nos meus filhos. Aqui não é minha casa, aqui é um lugar que infelizmente eu tive que parar”, diz. Apesar das circunstâncias, tenta sempre enxergar a situação pelo melhor prisma. “Esse tempo está valendo para eu aprender que eu não sou dona dos meus filhos, que era meu apego.”

Em uma das visitas, o mais velho de três filhos, de 18 anos, afirmou que os irmãos estavam mais unidos e tinham parado de brigar. Durante toda a vida, a mãe pedia pela união deles, esperando que se ajudassem na eventualidade de ela não estar mais ali. “Eu não morri, mas vim parar presa.”

Sandra carrega as fotos dos filhos na agenda. Não gosta de colocar nada deles na parede do presídio, nem os cartões de sua filha. Segundo ela, é um receio de que fique impregnado. “Coisa de mãe”, diz. E coisa de mãe é também poder se orgulhar de ser um exemplo para eles. Foi isso que sentiu quando, após realizar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tanto em 2022 quanto em 2023, soube que seus filhos se motivaram a fazer o mesmo.

Na rotina, antes da prisão, trabalhava muito como garçonete e cozinheira, mas no pouco tempo que tinha para passar com os filhos gostava de fazer caminhadas. Sentavam próximo a um lugar rodeado de natureza e observavam a vida passar.  

Dentro da unidade prisional, conversa com as plantas e com os diferentes pássaros. A proximidade com a natureza ajuda Sandra a lembrar do lar. Na galeria onde fica sua cela, também tem suas plantinhas: espada de São Jorge, hortelã e uma suculenta. “Lá vem a Sandra da Mata”, anunciam as outras apenadas.  

Construir um novo lar

Karen
Karen quer pintar sua futura casa de rosa, a cor dos esmaltes que tem nas unhas - Foto: João Pedro Rodrigues

Karen, de 44 anos, tem contato com a filha Kauane, mas não aceita receber visitas dela no presídio. Kauane atribui isso à história da mãe com o irmão, que também foi preso e Karen lutou muito para tirá-lo da cadeia. “Acho que ela não quer que eu passe pelo mesmo, que eu fique enfrentando a mesma situação que ela enfrentou”, supõe a filha.

Ainda que faça muitos elogios e guarde muito carinho pela mãe, Kauane afirma que o período em que vivia com ela e com o padrasto alcoólatra deixou traumas. As brigas do casal e posteriormente a drogadição da mãe a fizeram sair de casa para morar sozinha aos 18 anos. Hoje, com 25, ela mora com o marido. “Certa vez, minha filha disse: ‘como eu quero minha mãe de volta’. Ela vai ter a mãe dela, bem melhor do que tinha antes”, promete Karen. 

E emenda: “Eu que me prendi, três vezes”, batendo no peito. Ela se refere aos episódios em que chamou a polícia para se entregar. Explica não haver nada pior do que a vida de foragida. “Isso aqui não é prisão, é uma libertação para não estar morta do lado de fora. Uma nova vida”, explica.

Ela diz ser a pessoa ideal para falar sobre lar, pois, em alguns meses, estará livre e reconstruirá sua vida em Canoas, na casa que herdou da mãe. Atingida pelas inundações do mês de maio, a residência precisa de reparos, mas o esforço não é estranho à Karen, que durante a tragédia climática, quando estava foragida, ajudou na limpeza de carros atingidos pela lama. Ela já escolheu a cor para o novo lar: rosa, a mesma do esmalte que tem nas unhas.

O sonho de Karen é se tornar uma voluntária, fazer uma horta no pátio da nova casa e receber pessoas desabrigadas. “Hoje eu estou aqui, dando uma entrevista para vocês. Eu vou sair daqui e me ajeitar. Lá na frente, a entrevista vai ser outra.”

*O sobrenome das apenadas foi preservado

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